sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

A ARTE PERVERSA DE ADULTERAR CRIANÇAS


Histon 2 JAN 2018

por Abdul Cadre

Retorcendo a etimologia, não com estas palavras, mas com este sentido, dizia a brincar Agostinho da Silva que um adulto se obtém pela adulteração de uma criança. Embora sem suporte etimológico, isto é bem verdade. A forma como educamos as crianças é de uma grande perversidade: cria-se um modelo de conveniência e comodidade para os adultos, obriga-se a criança a aderir a esse modelo, diz-se-lhe que é o caminho, a verdade e a vida, que o modelo não só é a verdade como é o Bem. A todo o momento se julga a criança, não pelo que ela é, mas pelo que se espera que seja, assim a alienando da sua natureza profunda para que corresponda ao artifício do modelo.

É evidente que isto que digo respeita apenas aos sectores não segregados da sociedade, mormente à chamada, mas mal definida, classe média, porque se falássemos das crianças dos bairros degradados, não era de perversão, mas de crime colectivo inqualificável que falávamos. Crime de que todos somos culpados, em graus diversos, certamente, mais pela apatia do que pela acção, sendo dispensáveis as desculpas tolas e repudiáveis, as atitudes  dos hipócritas que se permitem atribuir aos miseráveis a culpa da própria miséria. Falaremos disto em outra ocasião.
Prossigamos: quando falo criticamente de adesão a modelos, não pensem que habito numa nuvem, sei bem que o facto de vivermos em sociedade implica a criação de modelos, tendo em vista a convivência pacífica e progressiva dos indivíduos. O que digo, o que pretendo deixar claro é que não somos qualquer modelo e que todos os modelos que se criem se devem submeter ao princípio do falseável, isto é, são de serventia, e devem ser invariavelmente mutáveis e provisórios. Devem ser criticados a cada momento e substituídos por obsolescência. É falsa a crença na segurança pela permanência.

A generalidade das patologias de angústia que infectam a sociedade tem a sua génese na forma como são educadas as crianças: pede-se-lhes que acreditem no exterior, que é o bem, do mesmo modo que é o bem o que é cómodo para os adultos, que armazenam os filhos em creches e em centros concentracionários de castração mental, a que chamam escolas, para poderem ir trabalhar em actividades alienantes, onde se atropelam e rasteiram uns aos outros. Chamam a isto competitividade.

Como adulteramos as nossas crianças? No dia a dia, pela catequisação do modelo e, sendo o modelo mercantilista, pela chantagem, pela compra e pela venda. Portas-te de acordo com o modelo e és um menino bonito, que de contrário és feio e já não levas a playstation. Depois, vem a traição: se bem dispostos os pais, há simulacros de afecto; se mal dispostos, a playstation não vem, mesmo que o menino tenha fingido ser bonzinho. 

Mas tudo poderá vir em fartura se o menino ganha novo pai, porque dois ou três pais é o que está a dar. O pior, as mais das vezes, está no desvio de atenções e afectos quando da mãe há namorado novo e as birras do menino se tornam insuportáveis.

Meninos que não encontram segurança no modelo (ou nos modelos), onde o modo de ser é a perturbação e a angústia de identidade. A angústia do abandono e da solidão.

Aquilo que deveria constituir a base do ser – o ententendimento, a energia e a afectividade – desmorona-se. Não há entendimento possível quando tudo é o contrário de tudo. Nenhuma energia mental ou física pode colmatar a insegurança catastrófica que gera a impotência, perante um exterior tornado um inimigo implacável. Não há afectividade nos seres que perderam o seu centro natural – o seu verdadeiro ser – em troca de um centro artificial que é uma mentira: o modelo traído.

ABDUL CADRE

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