sábado, 6 de maio de 2017


José Flórido

Parece que as folhas do calendário já vão sendo insuficientes para incluir todos os dias que nós inventámos: O dia do pai, o dia da mãe, o dia dos avós, o dia dos filhos, o dia dos netos... Mas, porque temos, afinal, de estar sujeitos a tantos convencionalismos? Melhor seria, creio eu, celebrar apenas o "Dia de Hoje", sem lhe atribuirmos qualquer designação, mas, ao mesmo tempo, incluindo nele todos os acontecimentos verdadeiramente importantes, todas as pessoas que amamos e todas aquelas que contribuiram para a promoção da humanidade. Foi por isso que decidi, neste "Dia de Hoje", reavivar a memória de Agostinho da Silva, sem que isso tenha, evidentemente, qualquer relação com a data do seu nascimento ou com a data da sua morte. Sinto agora a sua presença, bem nítida, e oiço a sua palavra firme, conciliadora e abrangente, sempre adequada a cada situação e a cada pessoa. Palavra, acompanhada de um gesto acolhedor, sereno e fraterno, que melhor explicitava e complementava as suas ideias, Vejo ainda aquele seu rosto jovial e aquele seu olhar de criança sábia, expressando convictamente os seus sonhos de visionário, capaz de mobilizar os outros para a ação, através da sua disponibilidade de pensar, pois, conforme me dizia numa carta, "o máximo da ação (e é disso que precisamos hoje acima de tudo) só virá com o máximo de disponibilidade (e talvez seja essa a palavra que melhor poderá dar a ideia de "vazio" ou de "nada" de Lao Tse). "Disponibilidade", "vazio", esse "nada que é tudo" e ainda o seu devaneio de "ser poeta à solta" eram palavras, expressões e atitudes com que nos contagiava e despertava. Pois, Agostinho era um ensinamento vivo. E quão distante estava ele dos velhos modelos de pensamento que pretendem quase sempre "formar" - ou "dar forma" - às outras pessoas, de acordo com certos conceitos perfeccionistas acerca do que está certo e do que está errado, do que é verdadeiro e do que é falso, do que é bem e do que é mal.

Monge e marinheiro eram as suas atitudes perante a vida: Monge, pela sua superior solidão e pelo desapego ao "ter", pois que era do seu agrado, como também me dizia, "viver pobre, viver modesto, viver estudando para mais ter de adorar, viver servindo, viver eliminando os problemas próprios para ter apenas os dos outros, viver com os pés no possível para atingir o impossível"; e marinheiro, pela mística de realizar o sonho de novas Descobertas que, agora, pudessem ligar o mundo pelo apelo à vida conversável e pelo abraço fraternal entre todos os povos.

Por tudo isto, e por muito mais que aqui não consigo dizer, daqui - deste mundo que ele nunca quis que fosse "i-mundo" - o saúdo e procuro expressar a minha gratidão neste poema que lhe dediquei

E assim foste palavra, gesto, ação...
E monge e marinheiro a tua lida.
Um nada que foi tudo e ressurgida
a tua voz deu voz ao coração

Com todos celebraste e foste irmão
Desmoronando os muros desta vida.
E logo a velha taça remetida,
surgiu outra mais bela em tua mão

O teu olhar permaneceu tão puro.
E o teu rosto tão velho de criança
expressou, sem um disfarce, eterno sim.

E quando as caravelas do futuro
levarem os teus sonhos, tua esperança,
o mar com fim vai ser o mar sem fim.

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