terça-feira, 29 de julho de 2014

O luto de D. João I em Alhos Vedros


No passado dia 18 deste mês de Julho do Ano da Graça de 2014 completaram-se 599 anos do falecimento da malograda Rainha D. Filipa de Lencastre.
Sob o efeito de indescritível sofrimento, Sua Alteza, el-Rei D. João, o Primeiro, vai despedir-se de sua amada esposa.
Os filhos aconselham-no a abalar, para não ser vítima da malfadada pestilência.
O Conselho Régio aprova a partida.
Em essa mesma data, Sua Alteza aporta à Vila de Alhos Vedros.

«Senhor, porque semtimos que a senhora Rainha he era tall pomto, que em breue tempo fará fim de sua uida, pareçenos que he bem i5 que uossa merçee sse parta daquy pêra alguúa parte, porque o mall nom aja rrazom de seer mayor, sobreuimdouos alguíía gramde emfirmidade pollo aazo de uosso gramde nojo. O quall com menos pena semtirees nom teemdo amte os olhos a força do caso, porque o auees de semtir.
E bem uos parece, rrespomdeo elRey, que eu aja de desemparar a ssemelhamte tempo huíja molher, com que tam lomgamente niamtiue companhia, por certo hi sse pode seguir quallquer caso que a Deos aprouuer, mas eu per nehuú modo nom partirey dapar delia, em cuja companhia me Deos faria merçee de me leuar pêra o outro mundo. Porque querees uos senhor, disseram os Iftamtes aazar dous muy gramdes malles por uossa estada sem esperamça de nehuú proueito. O primeyro, que semtimdo-uos a Rainha açerqua de ssi, acreçemtarlhees mayor trabalho, quamdo lhe lembrar que ja uos mais nom ha de ueer. Ca posto que a sua uoomtade seia comforme aas cousas do outro mundo, em quamto a alma esta na carne, he necessário que a humanidade rrequeyra o que he de sua natureza. O segumdo he que uos estamdo aqui, he necessário que estees a todos seus offiçios, que a ueiaaes depois de fimda. A quall uista uos trazera aa comsijraçom mujtas cousas, cuja nembramça acreçemtara o uosso gramde nojo, de que sse uos depois pode seguir alguúa emfirmidade que será mujto peor. Porem uos pedimos por merçee, que uos nom apartees daquello que sempre husastes .s. rrezam e comsselho, mayormente sobre cousa tam assijnada.
Pois que assj' he, rrespomdeo elRey comtra o Iftamte Duarte, uos mamdaae chamar todollos do comsselho que aqui ssom, e fallaae com elles, e o que acordardes que he bem que eu faça, isso farey.
E breuemente o comsselho feito, determinaram que todauia elRey se deuia partir dalli, e sse passar aalem do Tejo a huú luguar que chamam Alhos Vedros, como sse de feito partio. Mais daquelle triste espidimento que elle fez da Rainha sua molher, quamdo a foi ueer amte que sse partisse, nom posso eu fallar tamto como deuia, porque a força das lagrimas me embarguam a uista, que nom posso escpreuer, comsijramdo em cousa tam triste, ca sse me apresemta amte a jmagem do emtemder, como o uerdadeiro e leall amor he mais forte cousa daquellas que a natureza em este mundo jumtou. Do quall Sallamam disse no camtar dos camtares que era forte como a morte.»
in CRÓNICA DA TOMADA DE GEUTA POR EL REI D. JOÃO I,”COMPOSTA POR GOMES EANNES DE ZURARA”,
PUBLICADA POR ORDEM DA ACADEMIA DAS SCIENCIAS DE LISBOA, SEGUNDO OS MANUSCRITOS N.ºs 368 E 355 DO ARQUIVO NACIONAL. FRANCISCO MARIA ESTEVES PEREIRA


Recolha feita por Francisco José Noronha dos Santos

segunda-feira, 28 de julho de 2014

REAL... IRREAL... SURREAL... (90)

Circle of Children, Albery, 1999
Óleo sobre Tela, 76x76cm

IRMÃOS

Eram muitos.
Ao todo seriam treze, não fosse os que estavam para nascer…
Havia neles uma determinação que travava convicções e colocava palavras por dizer na perplexidade dos que com eles se cruzavam.
Eram muitos e traziam uma quietude absurda que se instalava devagar. 
As miúdas mais velhas sorriam, silenciosas. Colocavam as mãos sobre as cabeças dos mais novos e entretinham-lhes a idade. A leveza dos gestos sobrava ao sossego imediato e todos sorriam.
Agora eram treze.
Em breve seriam quinze. Manuela estava grávida de novo. Gémeos.
Naquele dia, estavam apenas oito, com o pai.
«Hoje não conseguimos despachar-nos todos…»

Uma mulher desconhecida notou, baixinho: «Esta gente não tem juízo. Hoje em dia? Não se justifica. Não pensam na vida, coitados!»

As miúdas mais velhas apenas disseram, sorrindo: 
- Qual de nós deixarias por existir?

E a mulher, desconhecida, compreendeu. Tranquilamente.


Maria Teresa Bondoso

domingo, 27 de julho de 2014


27 / 2014


Foto: Edgar Cantante


O ESTADO DO TEMPO – III


O mar, o rebentar das ondas, a areia e o vento.
A presença dos amigos, física ou recordada e assim sentida, a fotografia na parede e a magnólia que se agita como se apenas estremecesse.
A magnólia não está sozinha.
Bem de perto um ácer observa-a atento e, de cima do pequeno montículo que mais parece um soluço da terra, uma oliva com vários ramos disso faz registo como que cronicando.
A música que incessantemente se compõe e as ideias que nos vão nascendo e que depois fazem o seu caminho. Naturalmente, construindo e habitando a calma que aqui mora.
Por vezes o registo agita-se porque as ideias andam soltas e em todas as direcções.


Foto: Edgar Cantante

Pois é.
É assim mesmo.
Como tornar a acalmia inexpugnável se…
Bem, já sabíamos do desemprego e do corte dos salários, dos ataques à saúde e escola públicas, do aviltar de quem trabalha, do contrato social violado e ultrajado a todos os níveis, das corrupções repetidas e continuadas de bancos e banqueiros.
Já sabíamos sim. Mesmo para os mais distraídos tanta reincidência acabou por os confrontar.
Retorna-se por vezes à calma mas, a agitação repete-se.
Aturdidos, estupefactos e indignados deparamo-nos com o genocídio de um Povo perante a complacência e o silêncio das instâncias internacionais de onde se esperavam atitudes firmes e eficazes para parar o massacre.
E a Justiça? A Justiça toma-se aqui por despropositada.
É um tempo da força pela força. Os mais “fortes” batem, os mais “fracos” são batidos.
Os David só batem os Golias por acidente ou excepção.
E o mundo continua a girar, sempre ou até algum dos poderosos o mandar parar ou implodir.
Entretanto, por cá, deparamo-nos com a criação de mais um D. Sebastião.
Muitos se afadigam, outros colaboram e, mesmo perante o alheamento ou indiferença duns outros, todos os dias se acrescentam mais uns detalhes à maquilhagem. Também há os que estão contra. Uns porque dizem que já chegaram à “Terra Prometida”, outros (poucos) porque dizem não acreditar em novos Sebastiões
A gente regista, tenta até alhear-se mas o lastro acumula-se. Condiciona e influi no movimento das ideias, no estado de espiríto, nas expectativas de futuro.

*

Os amigos chamam lá de fora. O Sol brilha.
Uma fala do neto recém-nascido e, naturalmente, manifesta felicidade. Outro partilha a mensagem da filha em viagem pelos Açores interrompendo o discorrer preocupado sobre a incerteza do salário no final do mês.
Lá está o fluxo a repetir-se.
Lá fora, o Sol brilha.
Cá dentro, ameaça de tempestade a todo o momento.


Foto: Joana Croca

sexta-feira, 25 de julho de 2014

ALMA DO FADO



É uma exaltação declamada de sentimento fadista
que deixa transparecer que fadista é inequivocamente
todo aquele que gosta do Fado e o deixa reflectir na alma.
Veja e ouça este tema aqui neste link:

http://www.euclidescavaco.com/Poemas_Ilustrados/Alma_do_Fado/index.htm

Euclides Cavaco
cavaco@sympatico.ca
www.euclidescavaco.com

quinta-feira, 24 de julho de 2014


D'ARTE - CONVERSAS NA GALERIA
 
22 / 2014
 
FOTOGRAFIA
 
Edgar Manuel Cantante
 
 
Do quotidiano cinza e baço, de conformismo e apatia feito, sobressaem as amarras que nos prendem. Desfazem-se os nós da solidão e do vazio e um brilho cintilante desperta-nos para a vida.
                                                                                                                   Edgar Manuel Cantante
 
 
Edgar Manuel Almeida Cantante, de 58 anos, natural e residente em Alhos Vedros, iniciou a sua atividade profissional em 1977 na Quimigal e posteriormente trabalhou na Cimpor na área comercial.
Tirou o curso comercial na Escola Alfredo da Silva, onde pertenceu à direção da 1ª. Associação de Estudantes pós 25 de Abril (ano letivo 1973/1974). Estudou igualmente no Liceu do Barreiro onde concluiu o curso complementar ( antigo 7º. Ano dos Liceus), tendo pertencido ao Conselho Diretivo em representação dos Alunos.
No decorrer da sua atividade profissional foi trabalhador-estudante, em regime pós laboral, no curso de Direito- Ciências Jurídicas na Faculdade de Direito de Lisboa.
Como dirigente associativo iniciou a sua colaboração aos 15 anos na comissão cultural da Academia, tendo passado pelos corpos sociais da Pluricoop, pela direção da Velhinha e da Cacav. É sócio fundador da Cacav  e da Associação dos Amigos dos Animais Abandonados da Moita. Atualmente é membro da direção da Cacav e pertence à Comissão alargada de proteção de crianças e jovens do Concelho da Moita ( CPCJ ).
Como Autarca pertenceu à Assembleia de Freguesia de Alhos Vedros em 2 mandatos (1997/2001 e 2001/2005), à Assembleia Municipal da Moita também em 2 mandatos (2005/2009 e 2009/2013) sendo atualmente vereador eleito nas últimas eleições autárquicas pelo Partido Socialista.
Foi membro do Conselho Geral do Agrupamento de Escolas José Afonso de Alhos Vedros na qualidade de representante da comunidade.
A fotografia sempre foi uma paixão e motivo de ocupação nos tempos livres. Embora sem formação Oficial específica, tem frequentado cursos amadores de iniciação à fotografia promovidos pela Cacav. Participou em algumas exposições colectivas, assim como em vários workshops e foi premiado na Maratona Fotográfica da Cacav  realizada em 2006.
Em 2013 realizou uma exposição individual de fotografia (“A Procura da Luz”) na Biblioteca Municipal José Afonso em Alhos Vedros.
 
 

segunda-feira, 21 de julho de 2014

REAL... IRREAL... SURREAL... (89)

Espectadoras, Nuno San-Payo, 1998
Óleo s/ Lona e Platex, 60x90cm
As duas irmãs

Eu nunca soube se o seriam mesmo, nem tampouco se ele, o suposto irmão, seria doutor – olhavam e inclinavam a cabeça. O empregado servia um café à rapariga e elas pagavam. 

As duas mulheres, distintas e caladas, uma um pouco mais atrás do que a outra, pareciam dizer tudo com gestos. À Filomena reservavam um pesado desaprumo e, no caso do Arturzinho, uma inimizade muito aberta colocava-lhes no olhar um claro desprezo acompanhado de um agitar nervoso da mão. Como que a indicar desejarem-no longe...
Depois, havia ainda a Salomé a deixar sempre dois sorrisos incompletos, não fosse o irmão perceber ser aquela a vida que sonhavam. 
Ao António, cujos versos cada uma delas sentia serem-lhe dedicados, concediam um meneio discreto e um olhar cheio de promessas, captado de forma tranquila pela sua mulher, Clara. 
Depois, contavam-se ainda os miúdos da criada, o homem do talho, a mulher do coveiro, o filho da viúva da praça e a rapariga do aparelho nos dentes – que estranha moda, aquela. 
Andavam sempre juntas as irmãs do doutor. O pai, homem distinto, julgara sempre que os outros eram pouco, pelo menos para as suas meninas… e o irmão seguira-lhe as vontades e depois também elas, as mais novas. Aprenderam piano com uma professora russa a quem dispensaram um pouco mais de afeto e com a qual devem ter tido os momentos mais perfeitos da sua vida a sério. A que tinha o costume de andar mais atrás foi a primeira a aprender os acordes e foi também a primeira a morrer, ontem. 

A maluca do café chama-se Filomena. Está sempre no café, ao domingo, e as duas irmãs nunca, até ali, tinham dispensado o momento em que ela, com alguma displicência própria dos tolos, lhes dizia de forma casual, quase sem esperar resposta:
- Olha, podes pagar-me uma bica?

Desta vez, Filomena ficou calada a olhar a rosa, ainda vermelha, sobre o piano do café.


Maria Teresa Bondoso

domingo, 20 de julho de 2014


26 / 2014



TEATRO DO MUNDO


Eu dou o que sinto,
tu emprestas o teu nome e
para o mundo
– que não sabe –
o nós, és tu.

Entre-existimos
sem perto nem longe.
Sem distância.
Directa-indirectamente
como terra e raiz, água e fruto, abelha e flor.

Pulsamos num nós
mesmo que não visível
na composição.
Pele que envolve a polpa,

Favo, colmeia, mel.

sexta-feira, 18 de julho de 2014

Livros d'África




JOSÉ CARLOS VENÂNCIO 

Nasceu em Luanda, em 1954, mas veio ainda criança para Portugal onde cresceu e se formou em Sociologia, sendo catedrático dessa disciplina na UBI – Universidade da Beira Interior. A sua actividade literária estende-se, para além dos livros, em artigos de opinião, ensaios e palestras, sendo grande parte deles, senão a totalidade, sobre temas africanos.
“A angolanidade, como até agora a entendemos – não obstante se pretender dela o mais extensível possível ao espaço político angolano – não deixa de ser apanágio de minorias intelectuais. Foram estas que se viram confrontadas mais de perto com o sistema colonial, no que este tinha de mais subtil – não menos eficaz que o aparelho policial – para se impor: o idioma.”

É em redor deste pensamento que se desenvolve o ensaio “UMA PERSPECTIVA ETNOLÓGICA DA LITERATURA ANGOLANA”. E inicia o seu estudo com António de Oliveira de Cadornega que considera, ao contrário de outros, o precursor da literatura angolana ressalvando que “para a sua compreensão neste sentido é antes do mais necessário situar Cadornega no seu tempo”, isto é, não podendo esquecer que naquele tempo se vivia a dicotomia de “nós, os cristãos/civilizados” e “eles, os pagãos/gentios”.

Prosseguindo, considera Assis Júnior e Castro Soromenho como os escritores mais importantes da angolanidade na primeira metade do século XX, embora, naturalmente, de “origem biológica e social diferente”.
Depois debruça-se sobre os poetas da denominada Geração de 50: Agostinho Neto, Viriato da Cruz, António Jacinto, António Cardoso. A importância da mensagem da sua poesia, alertando para as injustiças criadas pelo sistema colonial, é amplamente e argutamente analisada.

Mas, segundo o autor, “foi José Luandino Vieira aquele que mais longe chegou na informação da estética da angolanidade”, opinião que também eu partilho (devo até dizer que, salvarguardadas as devidas distâncias e competências, tive o atrevimento de o afirmar ao próprio Luandino). Tal como o brasileiro, o português desenvolvido em Angola também ganhou vida própria, sendo Luandino o primeiro a fazer uso dessa nova escrita, passando a ser aquilo que eu chamaria de angolês, que hoje é usada por muitos dos novos autores angolanos e não só.

Para quem gosta e pretende aprofundar os caminhos da Literatura Angolana esta é uma obra fundamental, concordando ou discordando dos pontos de vista do Autor. Foi editada pela Ulmeiro em 1987.



Tomás Lima Coelho


quarta-feira, 16 de julho de 2014

O Poema do Dia, por José Gil



traz o sol mais forte do que eu
uma relva curta nas tuas pernas

Pai  Vento
a minha mulher linda, amo-a, Solange,

traz o sol e a relva curta  de todo o mundo
pelas pernas claras e brancas amor, o grito
a casa é clara como o sol, branca amor em
Itabira e Cascais, pai vento um reino de flores, água
1 de Julho 2014 para salvar o mundo
ouve a música das preocupações, uma
solução para ver o oceano aqui na águas livres


José Gil
http://joseamilcarcapinhagil.blogspot.com

terça-feira, 15 de julho de 2014


TER

Na formação aleatória
                    e responsabilizada
                    acredito na suavidade da música
                    no encontro das esferas: a colisão
                    evitada céus estrelas combinadas
                    em esburacados espaços (negros)

na deformação trazida
aos olhares informes das cobranças
sei do absoluto mistério

nas informações transmitidas
ao menino criado em ordens
reunidas renuncio ao saber
das asperezas e me rendo: músicas
suavizam a finalidade na destruição
conformada das vivências.
 
(Pedro Du Bois, inédito)
 


segunda-feira, 14 de julho de 2014

REAL... IRREAL... SURREAL... (88)


Woman on a Blue Divan, Ludwig Kirchner, 1907
Óleo sobre Tela, 81x91cm

SOMBRAS QUE DANÇAM

Tinha uma cara tão curta que, mesmo sendo magra, era redonda. O cabelo distribuía-se pela testa e pela nuca de forma muito certa, como se nele nada pudesse ser casual. 
Imagino que mais por necessidade do que por método, contasse pela manhã todos os seus cabelos para que o risco ficasse precisamente a meio. Era uma mania muito pouco racional, mas ele, homem determinado, certamente prezaria a coerência. Um dia, tendo-lhe ficado os cabelos por contar, pendeu para um lado e todos comentaram a bebedeira desusada de um homem habitualmente tão aprumado.
Tinha um irmão mais velho cuja mão terminava numa bengala de prata e que, de forma também incomum, repetia sempre por três vezes cada uma das suas falas. Era necessário que o fizesse já que a sua voz começava baixa, quase impercetível, e apenas na terceira repetição se assegurava ser ouvida. Era-lhe penoso saber que a maior parte das pessoas conseguiam fazer-se ouvir à primeira. Ele próprio tentara um dia falar logo de princípio num tom mais audível, mas as palavras saíram-lhe tão depressa que ninguém as conseguiu compreender. Habituara-se, por isso, a ser mais paciente do que revoltado e com o tempo foi-se reconciliando com tal caraterística, deixando a pouco e pouco de lhe chamar defeito. Até porque, curiosamente, se não fosse tal insólito facto, seria apenas o irmão mais velho do “Direitinho” ou o homem da “Luísa Sempescoço”.

Luísa nascera há precisamente quatro décadas. E, com ela, um segredo que penso ter descoberto num incerto dia. 
Aqui e ali, solta por uma impossível moderação, foi-se desenhando uma estranha verdade… a bebé tinha nascido dividida em dois pedaços diferentes, um no sábado e o outro apenas na segunda. De tantas as horas entre cada pedaço, ficara-lhe o pescoço pelo caminho e, anos passados, tal caraterística foi-lhe roubando o nome e a Luisinha da Filomena passou a chamar-se Luísa Sempescoço. Esta era umas daquelas coisas que, num mundo onde apenas entram os crescidos, se dizem muito baixinho e que os miúdos, curiosos, reinventam em histórias mais ou menos sinistras, mas que servem às crianças e justificam plenamente a distância guardada na missa, ao domingo.

Hoje não sei imaginar um homem de cabelos contados. Hoje, a Luísa descobriu em mim um domingo. Hoje um homem encontrou o ritmo certo para as suas palavras e nunca mais as há-de recomeçar. 

Agora sou crescida. Nada pode voltar a ser casual e apenas as sombras arriscam e dançam, soltas e sem medo.

Maria Teresa Bondoso

domingo, 13 de julho de 2014



 
25 / 2014
 
ACERCA DA ÁGUA E DAS FONTES
Em mais um regresso ao berço, algo fermenta na noite por entre o escuro do montado, as silhuetas das árvores, o hálito doce do pasto maduro e a lua cheia espargindo-se naquela sua luz tão reconhecível.
Chega-se e lá está a casa, fechada.
Só a casa sem qualquer presença humana mas, algo se afirma ainda e remexe.
Identifica-se na sensação de embalo, no algo que se conhece por dentro, nas memórias que se guardam.
As coisas que se sentem e se sabem, mais as que se sabem mesmo sem se sentirem e tudo o resto que se sente mas não se sabe.
 
Manuel João Croca
 
 
Fotografia de José Augusto Do Nascimento


sábado, 12 de julho de 2014

Duzentos e trinta (230) deputados? E o resto?...


Tirando a parte desértica, a Austrália tem quase dez vezes mais que o tamanho do território português, com um índice de desenvolvimento invejável e menos 80 deputados... Ora, num país onde a prioridade é o corte da despesa do estado, podem-se muito bem reduzir o número de deputados parlamentares. Mas também deputados municipais, vereadores, número de concelhos... Por mim, proponho já a junção dos Concelhos da Moita e do Barreiro, e o sacrifício de Alhos Vedros ficar como sede de Concelho. O que, de resto, não seria a primeira vez que aconteceria na história da região, do país, e a julgar pela experiência anterior parece-nos proposta a não desperdiçar. 

Luís Santos




sexta-feira, 11 de julho de 2014

Poema Construído (3)



Amor e guerra no Império das Copas

(A seta de Cupido)


Foi num dia 4 de Julho
lado de dentro do espelho
Isabel comeu o coelho
e nem fez muito barulho,
disse a Rainha de Copas
que nem gostava de rosas brancas
tocava perfeita a orquestra
"- mais um ovo-estrelado, por favor."

A Rainha de Copas é uma finória

pensou o empregado de copa
que já servira um cherne e agora esta garopa
cheia de salamaleques e de pose ilusória,
deixa estar que tu tens a mania mas vou-te tramar
despiu a farda e calçou os sapatos de pisar e esmagar
aproximou-se ao som da orquestra que continuava a tocar
e sussurrou à Rainha de Copas: a seguir ao estrelado vamos dançar?


A rainha deu a sua aquiescência
mas como é seu hábito fez muito mal
porque o empregado tem defeitos
e é bruto como uma porta fardada
pediram ao maestro na sua sapiência
que tocasse uma música sensual
para se despirem de preconceitos
- ele em pelota e a rainha pelada

estendendo a mão à rainha que se levanta

o empregado seduz a fêmea de porte imperial,
nu era o esquema da valsa entre os dois reinantes do salão.
NOTÍCIA DE ÚLTIMA HORA
irrompe um pajem pelo salão adentro:
IMPÉRIO DE COPAS EM CHEQUE
o rei de espadas acabou de montar um cerco a oriente
enquanto a ocidente a cidade de Copália cai nas chamas do seu exército

E assim ficou aquela

verdadeira queca real,
como uma flor à janela
à espera do roseiral.
"-Às armas!", gritou ela,
pondo fim ao gozeiral
e tudo por um barco à vela
e uma guerra imperial



Luís Santos
Manuel João Croca
António Tapadinhas
Diogo Correia
Luís Gomes



P.S.: Podem aceder aos poemas 1 e 2 clicando em "Poema em Construção" .

quinta-feira, 10 de julho de 2014

D'ÁRTE - CONVERSAS NA GALERIA
 
21 / 2014
 
ESCULTURA
 
Francisco Moura



 
Navegar, navegar
 
ferro forjado pintado
2013
 
E se o meu destino é o mar e o firmamento,
vou esculpir velas de pano, ferro ou mesmo sombra
para ajudar o vento e o seu cumprimento.
 
(Manuel João Croca)
 
 
 
 
 
Francisco Moura nasceu no Barreiro (em 1958) mas veio viver com os pais para Alhos Vedros com apenas alguns dias de vida.
Fez aqui a instrução primária até à 3ª classe e depois foi viver para o Barreiro. Estudou até ao 12º ano (Humanidades).
Fez o Curso de Pintura e o 3º Ano Complementar de Atelier na Sociedade Nacional de Belas Artes.
Tem ainda o Curso de Estética e Teoria de Arte Moderna.
Para além da Escultura também regista uma vasta actividade na Pintura (utilizando várias técnicas e linguagens) e no Desenho.
Actualmente é operário no Arsenal do Alfeite.

quarta-feira, 9 de julho de 2014

SOCIEDADE PORTUGUESA DE NATURALOGIA
Rua do Alecrim , 38, 3º, Lisboa


ALMOÇO DE VERÃO
13 de julho (domingo), às 13:30h


Bolinhos de arroz com algas Porphyra umbillicalis

Sopa de beldroegas

Massa estufada com bredos silvestres

Feijão verde com amêndoas tostadas

Omelete de salicórnia

Saladas de alface, tomate, pepino, courgete ....

Pickles de frutos de capuchinha

Doce de cenoura com cerejas em calda

Bolo de flores de sabugueiro

Suco de cenoura

Água aromatizada com Menta piperita


Infuso de erva-cidreira e milfurada da Gardunha

terça-feira, 8 de julho de 2014

Princesa da Rota da Seda I





Carola Justo

Acrílico

50X50


segunda-feira, 7 de julho de 2014

REAL... IRREAL... SURREAL... (87)

O Aprendizado, Reynaldo Fonseca, 2013
Óleo sobre Tela, 80x80cm

SEM PALAVRAS…

O Tomás foi para o 1º ano e ia muito contente por finalmente ter chegado à escola dos crescidos. Antes de sair, disse à mãe e à irmã que gostava muito delas, colocou a mochila às costas e dispôs-se a começar a escola a sério. 

No primeiro dia a professora disse-lhe que agora já não era para brincar e ele ficou muito satisfeito. Afinal, brincar era para os miúdos mais pequenos. Ele agora já era dos grandes.

Na primeira semana, o Tomás descobriu que tinha uma letra muito feia e que não era capaz de estar sentado. A professora, que era muito amiga dele e que lhe apagava as palavras escritas a lápis até ele as fazer como ela lhe tinha dito, viu logo que ele não conseguia ficar sentado quieto e calado e até o propôs para o apoio.

Agora, o Tomás costumava ouvir todos os dias: 
- Nada de brincadeira, menino Tomás! E quero tudo copiado com uma letra mais bonita.
E, às vezes, quando a professora reparava que ele era muito mal comportado, procurava ajudá-lo e ensinava-o a ser mais responsável:
- Já te disse, rapaz, aqui tens de estar sentado. Cala-te! Como é que queres aprender se só queres falar, falar e não ouves o que te digo?

Foi difícil, mas o Tomás acabou por se habituar à escola a sério. E até deixou de precisar do tal apoio. A professora fez um bom trabalho.
Agora, o Tomás até já anda à procura de um emprego. E costuma ouvir todos os dias:
- Terá de entregar o seu currículo escrito a computador, com letra Times New Roman, tamanho 12 e 1,5 de espaçamento.
- Lamentamos, mas procuramos alguém com mais iniciativa e maior rapidez no desempenho da tarefa que lhe propusemos.

Quase sempre, no meio, a vida a contrariar a escola. 

Maria Teresa Bondoso

domingo, 6 de julho de 2014

 
 
24 / 2014
 
 


Foto de João Ramos
 
 
Cansei do baloiço das ondas e do vaivém das marés.
Agora, quero descansar.
Tenho em mim a memória de muitos portos, de correntes diversas e salinidades várias e disso não prescindo.
São ricas e minhas as memórias.
Apreendia-as na consumação dos meus dias e, embora me tenha decidido pousar, exercito na rememoração o frémito das partidas, a gratidão do revelado em cada descoberta, o prazer do abraço em cada chegada.
Tudo isto - que é muito - me pertence, embora, quem me olhe assim pousado e ligeiramente obliquado, de tal riqueza possa nem suspeitar.
É grande a memória dos dias cumpridos a navegar.
 
Manuel João Croca


sábado, 5 de julho de 2014

100° ANIVERSÁRIO DA PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL


O ATENTADO DE SARAJEVO DÁ OPORTUNIDADE AO INÍCIO DAS CATÁSTROFES DO SEC. XX


António Justo

A 28 de Junho de 1914 um estudante, por conta da polícia secreta sérvia, matou, a tiro, em Sarajevo (Bósnia), o herdeiro do trono de Áustria-Hungria e a sua esposa. O conflito entre a Sérvia e a Áustria-Hungria dá oportunidade ao início das catástrofes do séc. XX. Inicia a primeira grande guerra mundial que terminou em 1918 com 18 milhões de mortos. A 28 de Julho Áustria-Hungria declara guerra à Sérvia.

Sarajevo, mais que a causa da Grande Guerra foi o motivo para, as potências em efervescência e desejosas de estabelecer uma nova ordem política na Europa, ajustarem contas e ressentimentos entre si iniciando a era da maior violência histórica (Era dos nacionalismos iniciados em 1848 e dos movimentos republicanos e comunistas).

Segundo os historiadores Fritz Fischer (tese da “Licitação para tornar-se potência mundial”), Kurt Riezler (no seu diário: “política do risco calculado”), Sönke Neitzel (“Alemanha não planeou a guerra mundial”), Christopher Clark (fala de uma “Crise pan-europeia”), nem Londres, nem Paris, nem Viena, nem Berlim, nem Moscovo estavam interessados em impedir a escalação militar.

A Alemanha desejava tornar-se potência mundial e ter um lugar ao sol como os povos colonizadores (Inglaterra e França). A sua frota de guerra ameaçava a supremacia marítima inglesa e o seu plano de Schlieffen ameaçava a França.

A guerra tornou-se numa oportunidade e por isso o imperador Wilhelm II da Alemanha apoiou incondicionalmente o imperador Joseph I de Áustria-Hungria na declaração de guerra contra a Sérvia, (28.07.1914) protegida da Rússia. A Rússia, aliada da França, mobiliza (a 30 de Julho) os exércitos em apoio da Sérvia. A 1 de Agosto a Alemanha e a França mobilizam os seus exércitos e a 2 de Agosto a Alemanha declara guerra à França e a 4 de Agosto a Inglaterra declara guerra à Alemanha.

O presidente dos USA Woodrow Wilson (nobel da paz) ao ver os navios mercantes americanos atacados pelos alemães intervém também na guerra. O presidente francês Raymond Poincaré via na guerra a hipótese de recuperar as áreas da Alsácia-Lorena perdidas para a Alemanha em 1871 (objectivo conseguido pela França no humilhante tratado de paz de Versailles e nas pesadas reparações da Alemanha que motivaram a sua preparação para a segunda guerra mundial). O turco Ever Pasha, homem forte do reino otomano, conseguiu que o Sultão Mehmet V declarasse a guerra santa dos muçulmanos contra os inimigos da Alemanha e da Áustria-Hungria; A Turquia bloqueia o acesso russo ao Mar Negro. Assim a Turquia pôde praticar o genocídio contra os cristãos arménios com o consentimento tácito da Alemanha. A fraqueza do czar Nicolau II e a agitação bolchevista de Petersburgo na Rússia levam o czar a abdicar em 1917. A Alemanha, para desestabilizar a Rússia contrabandeou para Petrogrado (Rússia) o revolucionário russo Lenine que se encontrava no exílio na Suíça. Lenine instalou o estado ditador comunista da União Soviética que durou até 1991.

A Europa de 1914 encontrava-se toda ela em crise. Não se deve esquecer que na Europa de hoje, tal como outrora há uma grande crise não só económica mas também política. Também a Rússia sonha com o poder antigo da União Soviética, a Turquia quer-se afirmar como potência estratégica. A Nato e a EU querem alargar o seu poder junto das fronteiras com a Rússia. A Ucrânia encontra-se dividida entre o leste e sul de cultura ortodoxa russa e o oeste de cultura grega-católica. Desde as guerras da decadência da Jugoslávia em 1991 parte da península balcânica e a Ucrânia continuam zonas instáveis e com potencialidade para desenvolver conflitos internacionais devido à instabilidade interna e aos interesses das potências que as circundam.


António da Cunha Duarte Justo


sexta-feira, 4 de julho de 2014

Castanheiro


por Miguel Boieiro

"Quem me dá uma castanha, leva outra!"




Quase tenho vergonha de dizer que vi pela primeira vez castanheiros quando assentei praça na Escola Prática de Infantaria (Mafra) onde fiz a recruta do Curso de Oficiais Milicianos, nos idos de julho de 1968. Não conhecia tais árvores, praticamente inexistentes no sítio onde residia e logo me encantou a sua imponência, a beleza das suas folhas e amentilhos, a tranquilidade proporcionada pela sua sombra.

 É claro, que os magustos de São Martinho com castanhas cozidas e assadas e outras iguarias da época outonal preenchiam a minha juventude, mas que querem, não conhecia ainda a árvore que proporciona tão salutares frutos.

Mais tarde, encontrei um moribundo souto em Vale-de-Milhaços (Seixal), resquício ligado a uma atividade corriqueira do tempo das descobertas marítimas que possuía estaleiros navais em Vale-de-Zebro. As castanhas, o biscoito (pão seco) e o bacalhau salgado eram os principais mantimentos dos tripulantes nas suas morosas viagens. A água, iam abastecer ao Talaminho (onde atualmente se realiza a Festa do Avante) ou ao Samouco. Daí aquele dito “Só paro no Samouco para meter água!”.

Mas não me queria dispersar! A vontade de redigir algo sobre o castanheiro foi reforçada quando, de visita a Alcongosta em plena Serra da Gardunha por altura da Festa da Cereja, resolvemos ir visitar um amigo residente noutra aldeia próxima, o Souto-da-Casa. O percurso que liga as duas aldeias está repleto de lindos panoramas. Para além das cerejeiras que ladeiam a estrada, surgem os altaneiros castanheiros. A toponímia não engana: souto é um substantivo coletivo que designa um conjunto de castanheiros. Diga-se, de passagem, que os substantivos coletivos constituem um martírio para quem quer aprender o nosso idioma, pois, na sua maioria, diferem completamente da palavra que está na base do agrupamento. Veja-se: cardume, rebanho, manada, enxame, récua, cáfila, … Tal esforço de memorização não acontece em esperanto. Basta acrescentar o sufixo -aro e logo obtemos o coletivo. Mas, peço desculpa, cá estou eu, outra vez, a divagar.

A Castanea sativa é uma árvore longeva da família das Fagáceas que pode atingir os 35 metros de altura. A sua madeira é dura e resistente o que a torna muito apta para mobiliário e construções habitacionais. As folhas são brilhantes, compridas, lanceoladas, dentadas nos bordos, com acentuada nervação paralela. As flores amarelas, formando cachos (amentilhos), são perfumadas e coexistem na mesma árvore as masculinas e as femininas, já que a espécie é dioica. Os frutos (castanhas) estão envolvidos numa cápsula espinhosa (ouriço) que pode ter até três exemplares e são deiscentes. Julga-se que a espécie sativa é oriunda da Ásia Menor e que se espalhou pela Europa por ação da civilização romana.

O nosso País foi um dos grandes produtores mundiais deste nutritivo fruto que outrora constituía um dos farináceos mais importantes da alimentação quotidiana das gentes. Era até denominado ”o pão dos pobres”. Devido à sua fácil conservação (castanha pilada) ela integrava os mantimentos dos navegadores, como acima se disse. O interior norte do País era, e ainda é, o principal produtor, mas não devemos esquecer a Serra de São Mamede e especialmente o concelho de Marvão, onde todos os anos se realiza a Festa da Castanha que visitei já por duas vezes. Na última, fui presenteado com um útil livro de culinária de castanhas pelo respetivo Presidente da Câmara.

A castanha é, de facto, um fruto versátil que pode integrar inúmeras ementas, sendo rico em glúcidos, lípidos, prótidos, sais minerais como cálcio, magnésio, fósforo e potássio, vitaminas B1, B2 e C. É estomáquica (sobretudo cozida), remineralizante, sedativa e tónica. O “chá” proveniente da cozedura das folhas tem diversas aplicações fitoterápicas por se revelar expectorante, antitússico, antipirético, antidiarreico, devido a possuir bastante tanino. Serve também para gargarismos.

Quando os castanheiros estão floridos, como os que encontrei no Souto-da-Casa, em pleno mês de junho, as árvores parecem estar iluminadas. As suas flores são também um bom abastecimento de néctar para a produção do mel.
Termino com a citação de um popular provérbio galego:

- Não há ruim vinho com castanhas assadas e sardinhas salgadas.

Nota: As imagens são da responsabilidade do editor